quarta-feira, dezembro 29

26 de Dezembro de 2004

Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.
Mas ninguém diz violentas
As margens que o comprimem.
[ Bertolt Brecht ]

Por algum motivo, ontem ao caminhar reparei nas folhas arremessadas vorazmente pelo vento, como um colérico valsar da Natureza. A nudez dos plátanos, o cair dos seus últimos e mais resistentes atavios, os súbitos murmúrios da noite pareciam cânticos suaves e piedosos carpindo a tragédia.
A imagem brutal de um filho roubado pelo mar apressou a caminhada. Queria fugir às ondas de comoção, aos cânticos plangentes arrastados pela catástrofe, à ópera do infortúnio, à complacência solidária e a todas as demais aliterações emergentes.
Queria muito ouvir o som da porta fechar-se atrás de mim, na esperança que a clausura me ajudasse ao esquecimento, mas depois da marulhada da desgraça, permaneceu a imagem flutuante da nossa pequenez perante a vida e a Natureza mas acima de tudo o tributo que todos, mais tarde ou mais cedo, lhe devemos.

sexta-feira, dezembro 24

25 de Dezembro de 2004

Mais um pedaço de matérias vegetais transformadas num alvo disponível ao registo de coisas que não bastam ser ditas.
Palavras tristes, desenhadas vagarosamente sobre o nascer de um novo dia, uma nova passagem no entretecer dos fios que se apertam, se entrelaçam e se apertam novamente.
Bastava dizer que está um lindo dia.
Bastava falar das paredes que me enclausuram numa dor inexprimível. Que o Natal é uma lâmpada pendurada por um fio, que este frio adstringente de Inverno me impede de escrever coisas que não bastam ser ditas.
Há dois mil anos atrás, poderiam ter evitado este meu tormento, este torpor no encontrar de coisas para escrever, quando olho pela escuridão da noite a intermitência das luzes que se mostram compassivas por esta inércia.
Culpo a Trincadeira, o Aragonês, o Alicante Bouschet e o Cabernet Sauvignon, desta minha ausência, mas a minha mão permanece sóbria e disponível para a insistente espera das palavras que não saem. Porque hoje, para além de um lindo dia, haveria mais coisas para escrever.
Só que as solitárias luzes lá fora, emprestando adornos que se repetem, solicitam outras veleidades, não dando conta que também eu estou sozinho. Na companhia, é certo, de Vivaldi, perturbado de quando em vez pelo crepitar da lareira, do Aragonês, da Trincadeira, inebriado de solidão, longe dos rituais, dos indigentes abrindo os telejornais, da sopa dos pobres, da solidariedade representada e de outras hipocrisias.
Vou correr as persianas.
Não quero mais ver as luzes intermitentes e os Pais Natais pendurados nas varandas.
Fico-me com o Aragonês, a Trincadeira, o Alicante Bouschet e o Cabernet Sauvignon, num subtil, encorpado e aveludado néctar, que me proporciona um doce desalinho.
Que persistam as palavras que me esperam, que o que me apetece tão somente é escrever que hoje esteve um lindo dia.
Agora vou dormir!

quinta-feira, dezembro 16

Precisei de lá voltar

Ao sítio que dá sentido ao pouco que me resta e me faz sentir o que ainda sou, para além dos despojos que só aguardam o fim.
Desta vez levei algum tempo para me distrair do olhar compassivo da natureza. O murmúrio da ribeira, o queixume das folhas, o ruflo das aves, soavam a gritos resmungados de acusações ininteligíveis. Mas ao menos ali, na quietude daquele lugar, a dor é mais suportável e a culpa torna-se redimível pela evocação da felicidade na lonjura do tempo.
Olho-me com piedade, pelo desleixo e degradação, mas ali, no Chão do Pinheirinho consigo imaginar-me pequeno, irrequieto mas feliz. Com a agilidade para desafiar o perigo, correndo de levada pelos muros da ribeira, numa alegria esfuziante, capaz de me levar ao choro, só de o lembrar.

sexta-feira, novembro 26

Palavras escritas

Acordo. Sento-me frente a uma janela. Na mesa um papel, uma caneta e o mesmo desejo, a mesma obstinação.
O crepúsculo dissipa-se suavemente e a natureza acorda no ressurgir das suas formas. Contornos que vão surgindo no prelúdio de um novo dia. Na neblina o bocejo difuso das árvores e ao longe, suspensas no horizonte, casas brancas denunciam vida no ondeado da serrania.
Palavras que se escolhem e se juntam para dizer a simplicidade de um olhar.
Foi assim mais uma vez, um ritual que se repete todos os dias. Escrevo e reescrevo, purgando excessos, na procura da perfeição impossível, um exercício solitário levado até ao limiar do insuportável.
Palavras escritas, palavras que resistem à voragem dos meus vazios, que me fazem bem mas não dizem nada, escritas simplesmente.

sábado, novembro 20

Um dia mau

O que nós não tentamos para contornar o fim. Tentamos a diferença, a singularidade, o etéreo, até um dia a Natureza tornar estéreis essas veleidades na fugacidade dum instante, como um soco no baixo-ventre.
Reinventamos tudo no espectro do acabamento, na angústia do aperfeiçoamento impossível.
Na passividade quase desistente dos meus dias, o mesmo desejo patético de notoriedade: Escrevo, penso-me diferente e quase chego a acreditar nessa singularidade.
Mas afinal quem sou? E de tudo o que sou, em que é que o sou mais? De repente pensar que há um tipo que sou eu, um rebotalho esparso e inconsequente de uma existência cheia de coisas vagas, inquieta-me.
E nesse resgate doloroso de uma vida sem fulgurâncias, o que é que em mim acabou muito antes do meu fim? Sim… o que é que perdura para além dos ossos que me sustentam?
Sentir-me assim, esvaindo-me no silêncio do abismo, na angústia do irrecuperável, no sopro tempestuoso da culpa, resta-me simplesmente ser. Há muito que me quedei no recosto dos meus limites, desistindo de ser mais nada para além disso.
Amanhã volto a escrever.

domingo, novembro 7

O tempo dos cabotinos

A manifesta incultura da sociedade, a apatia generalizada do momento que atravessamos, propicia o pretensiosismo.
Poderia falar-se hoje nos tempos dos cabotinos, gente que quer aparecer, alardeando capacidades que não possui no ofício das artes, ou em veleidades mais etéreas, como seja compreender o século XXI, em palestras acreditadas por oradores convidados.
Sendo os assuntos escolhidos, compreensivelmente inatingíveis ao nível cultural da maioria, fica a ideia insidiosa e narcísica que tais propostas e tais promotores não são mais do que barracas e feirantes numa autêntica feira de vaidades.

segunda-feira, outubro 18

Expiações da memória

No silêncio pardo da tarde só o ruflar dos pardais suspende a quietude daquele lugar. O murmúrio da água, aqui e ali desviada pelos atalhadoiros, os sulcos na ravina desenhados pela corrente, construiu ao longo dos tempos o mais encantador dos refúgios, o lugar perfeito para o que resta de mim, onde torno quando posso, mas sobretudo quando preciso.
É ali, no bucólico Chão do Pinheirinho que a minha copiosa memória me traz uma recordação feliz de um passado distante, e me reconforta das agruras da vida: A Quiana.
Se porventura existe em mim alguma capacidade de amar devo-a a ela.
Tenho hoje e tê-la-ei sempre comigo, numa imagem tão viva e fielmente registada cuja revelação só fica enegrecida pelo amargo sentimento de quase nem ter dado conta da sua morte. Culpar os reveses da vida, é uma escusa inaceitável.
Perdoa-me Quiana.

segunda-feira, outubro 4

Vodka com laranja

Fácilmente entendemos que o vocábulo iniquidade é inapropriado quando falamos de favorecimentos pessoais e usamos o que é nosso. O que não é a mesma coisa quando usamos o afecto como critério e o que é de todos como meio. Aí a falta de equidade já não é só imoral como abusiva e absolutamente inadmissível.
Refiro-me concretamente aos vergonhosos favorecimentos que resultam das relações de amizade no exercício do poder autárquico.
É hoje mais do que nunca iniludível o expediente político de utilizar como embuste as diferenças ideológicas para esconder habilidades.
Brindemos às velhas amizades!
J. Nobre

sábado, outubro 2

Dissertações sobre uma Agenda Cultural

Atavios gráficos em que o autor é exímio tornam este livrinho encantador. A capa, a sobriedade das cores, a subtileza das cambiantes azuladas, conferem-lhe uma leveza condizente com a ligeireza do conteúdo.
No interessante design gráfico, impresso em papel cochet 135 gramas, ressalta o azul celestial com algumas estrelas cintilantes a despontar na indefinida linha do horizonte.
A visão irónica e subliminar do autor está expressa na hábil escolha das cores. Para colorir o início do trimestre uma cor forte: o vermelho. A cor do sangue, da vida, simbolizando a vitalidade na expectativa do anúncio das propostas culturais, mas também a cor da vergonha, que ruboriza as faces de quem ama a cultura e a terra onde vive e se desilude pelo vazio do anunciado.
Para Novembro e Dezembro novamente o azul. Um azul que começa forte, colorindo a esperança mas que rapidamente se matiza num azul-marinho, onde a mesma se afoga.
Sobre o amarelo pálido, desmaiado do IOR 80 gramas que compõem o interior deste fantástico livrinho, folheiam-se as desilusões e defraudam-se as expectativas logo de início. Por baixo das cambiantes violáceas do cabeçalho, evocando as cores do Município, destaca-se o sorriso e a gravata do edil. Não é por acaso que o seu assessor de imagem lhe terá sugerido para a mão direita uma caneta branca pousada curiosamente na mesma alvura dos papéis.
Terá sido sobre aquela secretária e num daqueles papéis brancos, que o autarca terá feito o rascunho das suas brilhantes notas editoriais, onde o próprio refere com particular destaque o Ciclo de Teatro do Outono. Numa excelente estratégia de planificação da política cultural da edilidade, as peças que darão forma ao evento, surgem referidas como a designar para que o factor surpresa lhe confira um brilho especial e faça estalar as castanhas na boca dos espectadores. O mesmo fruto de cúpula esférica e espinhosa do nobre castanheiro, que o responsável pela composição do livrinho, utiliza como adorno gráfico no anúncio dos inúmeros magustos e festas da castanha, um dos principais eventos do trimestre, não esquecendo os vários torneios da sueca que proliferam por essas aldeias fora.
Então se eu soubesse, não poderia ter tirado a minha querida Digueifel do anonimato?
Em próximas edições da Agenda Cultural vou aceitar o desafio do Presidente. É que o bar da Associação da minha pacata aldeia é frequentado, seguramente, pelos melhores jogadores de sueca do concelho.

J. Nobre


sábado, setembro 25

Arquivo morto


Como em qualquer escritório existem prateleiras onde repousam os dossiers que depois passam para outros compartimentos e finalmente o arquivo morto.
Há dias decidi arrumar o meu. Entre outras coisas acabei destruindo papeis e documentos que julguei desnecessários.
Rasguei-os, coloquei-os num saco para a reciclagem no pressuposto de voltarem a ser novamente reutilizáveis.
Enquanto o fazia, a minha mente ( ou a segunda, como li nas Valquírias ) viajou até ao cemitério do Alto da Conchada.
Era o dia do funeral de um familiar, e como é hábito nestas, nem sempre tristes ocasiões, acompanhei as visitas às tumbas de outros familiares e amigos desaparecidos.
No cemitério da Conchada, como na maior parte dos cemitérios das cidades, a urna fica a aguardar que o coveiro execute o trabalho final, ou seja, tirá-lo da prateleira para um buraco, até que um dia transite para umas exíguas gavetinhas, identificadas por números que o tempo vai tornando indecifráveis. É este o fim triste de qualquer mortal, salvo os afortunados que têm sumptuosos jazigos com inscrições esculpidas de versos encomendados.
Mas até esses, a julgar pelo que vi, supostamente por dificuldades económicas, ou pelo resultado inapelável da acção de um executor judicial, acabam com placas a dizer «VENDE-SE».
Consternado, e exausto na procura de uma gavetinha com ossos de um antepassado, que já poucos faziam ideia onde, dei comigo a pensar como gostaria de ser apenas um simples papel.
Quando chegasse o fim da minha utilidade, passar-me-iam por uma daquelas máquinas que destroem em fitinhas e com alguma sorte novamente um papel branco.
Quem sabe não teria a sorte de um dia sentir as carícias de um aparo e perpetuar a minha existência numa qualquer estante.
Que bom seria sentir-me de quando em vez escolhido e desfolhado por um dedo indicador.


J. Nobre
2002

sexta-feira, setembro 24

A paixão de Francisco


A felicidade é como a beleza de alguns lugares. De tão intensa e arrebatadora, só o é de facto quando não se convive com ela.
Era este o pensamento de Rodrigo quando contemplava uma paisagem de verdes e ocres, contornada a cinza pelos muros que sustêm os socalcos de Sortelha.
Na lassidão que o tempo assume neste lugar e inebriado de tanta beleza, o olhar de Rodrigo repousou no azul celestial.
Sentiu Luísa aproximar-se. Deixou que pensasse não a ter visto. Um abraço e uma palavra sussurrada... Sentado na muralha do castelo, inclinou-se ligeiramente até sentir o seu corpo.
Por momentos as palavras tornaram-se inúteis. Enleados na quietude bela e bucólica daquele retiro as emoções não se exprimiam desse modo. Bastava-lhes estar, e ter a cumplicidade do vento ao cair da tarde.
Por uma estrada, de origem romana ladeada por casas em granito, que emergiam do chão sem quase se dar conta, ambos regressaram à casa Árabe, sítio escolhido como alcova dos seus desejos.
Rodrigo não tirava os olhos da encantadora Luísa. Não esperava que ela falasse ou deixasse escapar um suspiro, mas aguardava um outro qualquer sinal.
Calcorreando as calçadas romanas daquela aldeia medieval, sentia Luísa distante, inebriada pelo efeito do chamon que não resistiu em experimentar. Consentiu que lhe percorresse as linhas do seu corpo belo e sensual, com as mãos, com os olhos...
Reparou no sorriso de Luísa ao entrar na porta da casinha. No umbral estava cinzelado 1373. Um olhar contemplativo e enigmático... Provavelmente estaria a questionar-se das razões que a trouxeram ali. Um lugar inóspito e arrebatador, cheio de referências históricas e paisagens deslumbrantes mas tão distantes de Lisboa.
Que razão teria feito Luisa consenti-lo?... Os seus belos vinte e dois anos, ávidos de vida e exaltações, sugeriam-lhe essa inquietante questão.
Apesar de Luísa oscilar entre o carinho e a indiferença, entre a oferta e a recusa, Rodrigo desejava-a cada vez mais, sobretudo quando se mostrava distante e inatingível.
Entraram na « nossa casita » como ela lhe chamava. O deslumbramento era visível nos seus olhos quando observava e tocava o atavio ancestral espalhado pela casa.
Tinham acabado de fechar a porta, a pouca luz que trespassava a renda das cortinas de linho, levou-o a rodar uma pedra mais saliente que a intuição lhe fez julgar tratar-se de um interruptor.
De repente sem saber de onde, ténues raios de luz incidiam sobre uma espécie de toga em tons arroxeados, que tinha no centro, bordada a cruz da Ordem dos Templários.
Luísa deu conta do fascínio que essa visão provocou em Rodrigo e interpôs-se entre ele e a toga, como se quisesse tornar-se o único motivo dos seus deslumbramentos.
O seu corpo insinuado pela luz, na súbita transparência do vestido, faziam crescer o desejo. Amaram-se por uma noite.
Sortelha tornou-se para Rodrigo numa das suas grandes paixões. Talvez a mais perene.
Capaz de inventar qualquer Luisa nos seus devaneios oníricos.


J.Nobre.

terça-feira, setembro 21

O Ensaio do autarca


A única mesa não preparada foi curiosamente a escolhida pelo homem que acabava de entrar no restaurante. Pelo porte, pela voz altiva, pelos gestos de veneração dos presentes tratava-se certamente de alguém muito importante nesta terra que o meu amigo António visitava pela primeira vez.
Perante o olhar perplexo do meu convidado, o presumível notável, ele próprio, com as suas próprias mãos, pôs a mesa. Um gesto de grande humildade que não deixou ninguém indiferente.
Revelei ao António a verdadeira identidade da personagem. O seu sorriso desdenhoso revelava ser profundo conhecedor da essência das atitudes dos políticos, habilidosos no culto da personalidade conveniente.
Entendeu rapidamente o motivo da escolha daquela mesa. Tornou-se por momentos num excelente elemento cenográfico. Aquela demonstração de humildade não era mais do que um ensaio na arte do fingimento, um entre muitos outros que se seguiriam para recolocar uma peça em cena.
A cerca de um ano da estreia os ensaios tinham começado.

sábado, setembro 18

Vamos requalificar a Digueifel

Uma simples e pacata aldeia.
Emerge na sua simplicidade uma capela do século XVIII, única e inteira reminiscência do passado, mas que nesta pequena aldeia se assume como um anacronismo dissonante perante um aglomerado incaracterístico de casas. Um candeeiro de luz amarela de baixa intensidade torna o largo da capela ainda mais anacrónico acentuando essa dissonância.
Bem perto, no mesmo largo, uma fonte centenária desvalorizada, uma frondosa árvore assassinada pelo cimento, ao lado de outra sobrevivente que chora agora a sua morte. Taparam-lhe a vida com bancos circulares que consentem os rabos dos censores da vida alheia.
Homens que falam do tempo, das pessoas, do nada que preenche os seus dias, dos resíduos domésticos despejados nas valetas destinadas à drenagem das águas pluviais, da ribeira conspurcada transformada em defecador público, dos terrenos abandonados que há muito se tornaram em latrinas privadas, das famílias que se travam de razões em questiúnculas provocadas por uma sarjeta ostensivamente obstruída.
Esta é uma simples aldeia do concelho de Oliveira do Hospital. Sem peso eleitoral como tantas outras. Onde a insatisfação popular se resolve com visitas fugazes e sorridentes dos autarcas incompetentes, ubíquos e habilidosos.
Isso de assegurar às povoações as condições mínimas de higiene e salubridade é um conceito demasiado urbano.
Tratem vocês disso respondeu o edil ao obstrutor da sarjeta.
É o que o tio António faz todos os dias à mesma hora quando se dirige à calhada e evacua os excedentes do que o mantém vivo.
O que é que eu posso fazer? Aquele pedacinho de terra do meu quintal já é seu por uso capeão. Vou eu agora contrariar hábitos milenares de vida?
Saneamento, saúde pública... Tratem vocês disso, disse o edil.
Muito já foi feito. Então e aquele candeeiro oitocentista, só visto nas mais belas e nobres vilas deste País? Nestes tempos da requalificação vamos mas é requalificar a Digueifel. O Candeeiro já lá está. Tem que se começar por algum lado.
Os esgotos o saneamento, a higiene pública, isso pode esperar.
Nada como um adorno ou a poesia para apaziguar as inquietações destes pedantes visionários que invadiram as nossas aldeias.

Viver em certa aldeia pobrezinha
Longe dos homens, longe da Cidade
Levantar cedo e logo manhãzinha
Ir ao cantar do galo até à herdade

Mourejar todo o dia e à tardinha
Sem gestos de etiqueta ou de vaidade
Subir ao monte, entrar na capelinha
E rezar à Senhora da Piedade.

Não ter mais sonhos! Não ter um desejo!
Amar as flores, o Céu, amar a Terra
Do Sol, no poente receber o beijo.

E nessa paz divina, Sacrossanta,
Ter como amigo um belo cão da Serra
Por confidente...uma cabritinha branca!

(«O Meu Sonho» de Inácia Cid Teles)

Plágio

Francisco estava cansado de fazer o papel de barata tonta, perdido em porquês, em justificações, mas sobretudo farto de representar. Queria tão simplesmente ser ele próprio, egoisticamente assim, morrer e continuar vivo o suficiente até obter algumas certezas. Esclarecer algumas dúvidas que lhe tiravam o sono, dizia ele.
E foi justamente a satisfação da sua curiosidade a causa de um dos maiores embaraços da noite.
A Isabel, sem nunca ter demonstrado qualquer jeito para jogos de pontaria, de um só arremesso conseguiu enfiar-lhe o líquido pela abertura da camisa, como sendo a mais adequada resposta a tão insultuosas dúvidas.
Enquanto solteiros bastar-lhe-ia algum do humor que lhe era habitual, mas na qualidade de casada e rodeada de quem estava teria de ser contundente, para que não restassem dúvidas acerca da sua irrepreensível conduta. Deixou no entanto bem claro a todos os comensais, que tal probidade não resultava por merecimento do seu companheiro.
Enfim, um lamentável e sórdido incidente que apesar de tudo não conseguiu estragar o repasto. Inebriados que todos estavam daquele delicioso néctar chamado Monte Velho, no dia seguinte tudo seria desculpável.
Falava-se ao jantar sobre Oliveira do Hospital, ou alguém se lembrou de o fazer para amenizar o desagradável da situação, com o natural pretexto de justificar à Susana as diferenças desta cidade do interior que tinha tanto de soberba como de ignorante. Susana com ironia acutilante, rapidamente desmascarou o plágio do Francisco, referindo que Virgílio Ferreira tinha escrito exactamente o mesmo sobre Évora na Apariçãocidade absurda e reaccionária, empanturrada de ignorância e soberba”.
Francisco tentou salvar-se dizendo que não tinha lido o livro e como a mentira tem perna curta de imediato se auto-denunciou. Noutra alusão ao livro de Virgílio Ferreira a derrota final surgiu na resposta à pergunta de Susana acerca do máximo de porcos que um Oliveirense poderia ter.
A pergunta insidiosa e a risada geral irritaram o Francisco. No rubor da vergonha, as migas de bacalhau, a tigelada e sobretudo o Monte Velho, foram as únicas razões que o detiveram.
A ideia sobre Oliveira até era verdadeira
O que ele não tinha era o talento de Virgílio Ferreira.

quinta-feira, setembro 16

Atalhos

Luto todos os dias contra a vontade de me ir embora.


Aqueles momentos de paz e tranquilidade que imagino num lugar distante, parecem-me sempre impossíveis quando pesados os prós e os contras, como numa balança na qual um dos pratos tem a fuga e outro os valores éticos.
O ponteiro aponta o meio onde não está a virtude. Um ponto zero no seu lugar. Recomeçar o percurso depois da escolha errada. Depois dos atalhos trocar o incerto pelo certo.
Hoje poderá ser o último dia do príncipio da minha vida. Ou melhor da primeira parte.
Como quem vai fumar um cigarro no intervalo de um filme.
Momento zero.
Talvez ainda seja possível. Fazer um 'scandisk',escolher os 'files' que não interessam e mandar tudo para a 'reciclagem'. Revê-los na esperança de alguma coisa que ainda valha a pena e apagar o que não interessa num 'delete' definitivo e irreversível. Talvez...
Nesta convulsão que me assola a cabeça olho súbitamente para a minha mão e reparo que ainda me falta uma passa das doze. Um ritual patético que se faz todos os anos. Não me lembro que onze desejos eu pedi.Provávelmente nenhum.Sobrou uma. Nunca me perdoaria não cumprir uma promessa. Seria aliás impossível.De repente dou conta que mesmo no pressuposto do tal 'delete', haveria afinal um ficheiro inacessível. Um bip estridente e a mensagem de 'access denight'. Um ficheiro que guardava, solidariedade, paixão, amizade, livros, lágrimas, sofrimento, arrebatamentos, sei lá o que mais ...
Talvez não queira que seja possível.
Coloco lentamente a última passa na boca.
Não podia ter passado melhor o ano.

quarta-feira, agosto 18

Recordação de um Natal


A solidão da escrita é uma solidão sem a qual o escrito não se produz, ou se esfarela, exangue de procurar o que escrever.

Acabo de chegar a casa depois de quatro dias em Coimbra. Foi Natal e quase nem dei por isso. Guardei o carro na garagem silenciosamente. Não desejava dar quaisquer sinais da minha chegada. Ouvi alguém a descer as escadas, parei, fiquei imóvel por uns instantes, sustive a respiração até ter a certeza desse alguém ter saído pela porta da frente. Evitei com esta atitude aqueles clichés habituais (... Como está? Então esse Natal, a Família?..) Vinha cansado dessas formalidades. A susceptibilidade da tia Fernanda, as aventuras inverosímeis e rocambolescas do António, os queixumes do Germano sobre o emprego e a falta de tempo para a pintura, a tia Rita muito fragilizada, mas muito doce, desalinhava num cenário de conversas rebuscadas pelo insucesso das anteriores.
A setenta quilómetros de distância, tudo se torna mais claro. Um arejo de solidão deixa-me finalmente respirar.
É sempre necessária uma separação das pessoas que rodeiam aquele que escreve. É uma solidão. É a solidão do autor, a da escrita. Essa solidão real do corpo torna-se outra, inviolável, a da escrita.
É por estas e por outras que eu amo tanto as tuas palavras Marguerite. Solidão... Nada sei fazer sem ela. No meu imaginário de juventude Arganil é incontornável. Foi o período mais feliz da minha vida. Quase um quarto de século volvido o que mais recordo é a subida até ao monte, os passeios solitários, o fascínio pelo silêncio, pelo inóspito, que me proporcionavam paz e tranquilidade. Agora entendo porquê... Entro em casa e por uns instantes fico parado, pouso as poucas coisas que trazia comigo no hall de entrada e observo. Como está vazia, como se tornam insignificantes os adereços, os quadros, a mobília. Estas coisas só se tornam no que são, associadas às pessoas que as escolhem. A casa vazia retira-lhes todo o sentido. E a mim pouco me dizem, porque poucas são as que eu escolhi. Excepto três quadros que eu pintei, sendo que dois, foram generosamente pendurados na parede. Não mereciam tal exposição, a não ser pelo facto de pelo menos terem sido pintados por mim, único elogio que de alguém, até hoje tiveram. Entro no meu exíguo escritório, pequeno mas enorme no encanto dos momentos que me proporciona. E aqui tudo faz sentido. Os livros, a mobília, os acessórios e claro o computador. A minha esplanada para o Mundo. Aqui tomo um copo com os amigos, partilho palavras com sentido, sem barreiras nem espartilhos. Há espaço para todos sem ninguém precisar de perguntar:..Desculpe? Posso? Está ocupada? Aqui há sempre cadeiras de sobra. Aqui a solidão torna-se ambígua. Aqui estou só e acompanhado, amo sem conhecer, sofro sem dor, sou solidário e distante. Porque tudo é virtual. Docemente virtual, porque se o não fosse perderia o seu encanto.
A vida realmente vivida tem o condão de tudo estragar. Como o Natal...
A tradição já não é o que era!....