quarta-feira, agosto 18

Recordação de um Natal


A solidão da escrita é uma solidão sem a qual o escrito não se produz, ou se esfarela, exangue de procurar o que escrever.

Acabo de chegar a casa depois de quatro dias em Coimbra. Foi Natal e quase nem dei por isso. Guardei o carro na garagem silenciosamente. Não desejava dar quaisquer sinais da minha chegada. Ouvi alguém a descer as escadas, parei, fiquei imóvel por uns instantes, sustive a respiração até ter a certeza desse alguém ter saído pela porta da frente. Evitei com esta atitude aqueles clichés habituais (... Como está? Então esse Natal, a Família?..) Vinha cansado dessas formalidades. A susceptibilidade da tia Fernanda, as aventuras inverosímeis e rocambolescas do António, os queixumes do Germano sobre o emprego e a falta de tempo para a pintura, a tia Rita muito fragilizada, mas muito doce, desalinhava num cenário de conversas rebuscadas pelo insucesso das anteriores.
A setenta quilómetros de distância, tudo se torna mais claro. Um arejo de solidão deixa-me finalmente respirar.
É sempre necessária uma separação das pessoas que rodeiam aquele que escreve. É uma solidão. É a solidão do autor, a da escrita. Essa solidão real do corpo torna-se outra, inviolável, a da escrita.
É por estas e por outras que eu amo tanto as tuas palavras Marguerite. Solidão... Nada sei fazer sem ela. No meu imaginário de juventude Arganil é incontornável. Foi o período mais feliz da minha vida. Quase um quarto de século volvido o que mais recordo é a subida até ao monte, os passeios solitários, o fascínio pelo silêncio, pelo inóspito, que me proporcionavam paz e tranquilidade. Agora entendo porquê... Entro em casa e por uns instantes fico parado, pouso as poucas coisas que trazia comigo no hall de entrada e observo. Como está vazia, como se tornam insignificantes os adereços, os quadros, a mobília. Estas coisas só se tornam no que são, associadas às pessoas que as escolhem. A casa vazia retira-lhes todo o sentido. E a mim pouco me dizem, porque poucas são as que eu escolhi. Excepto três quadros que eu pintei, sendo que dois, foram generosamente pendurados na parede. Não mereciam tal exposição, a não ser pelo facto de pelo menos terem sido pintados por mim, único elogio que de alguém, até hoje tiveram. Entro no meu exíguo escritório, pequeno mas enorme no encanto dos momentos que me proporciona. E aqui tudo faz sentido. Os livros, a mobília, os acessórios e claro o computador. A minha esplanada para o Mundo. Aqui tomo um copo com os amigos, partilho palavras com sentido, sem barreiras nem espartilhos. Há espaço para todos sem ninguém precisar de perguntar:..Desculpe? Posso? Está ocupada? Aqui há sempre cadeiras de sobra. Aqui a solidão torna-se ambígua. Aqui estou só e acompanhado, amo sem conhecer, sofro sem dor, sou solidário e distante. Porque tudo é virtual. Docemente virtual, porque se o não fosse perderia o seu encanto.
A vida realmente vivida tem o condão de tudo estragar. Como o Natal...
A tradição já não é o que era!....