sábado, setembro 25

Arquivo morto


Como em qualquer escritório existem prateleiras onde repousam os dossiers que depois passam para outros compartimentos e finalmente o arquivo morto.
Há dias decidi arrumar o meu. Entre outras coisas acabei destruindo papeis e documentos que julguei desnecessários.
Rasguei-os, coloquei-os num saco para a reciclagem no pressuposto de voltarem a ser novamente reutilizáveis.
Enquanto o fazia, a minha mente ( ou a segunda, como li nas Valquírias ) viajou até ao cemitério do Alto da Conchada.
Era o dia do funeral de um familiar, e como é hábito nestas, nem sempre tristes ocasiões, acompanhei as visitas às tumbas de outros familiares e amigos desaparecidos.
No cemitério da Conchada, como na maior parte dos cemitérios das cidades, a urna fica a aguardar que o coveiro execute o trabalho final, ou seja, tirá-lo da prateleira para um buraco, até que um dia transite para umas exíguas gavetinhas, identificadas por números que o tempo vai tornando indecifráveis. É este o fim triste de qualquer mortal, salvo os afortunados que têm sumptuosos jazigos com inscrições esculpidas de versos encomendados.
Mas até esses, a julgar pelo que vi, supostamente por dificuldades económicas, ou pelo resultado inapelável da acção de um executor judicial, acabam com placas a dizer «VENDE-SE».
Consternado, e exausto na procura de uma gavetinha com ossos de um antepassado, que já poucos faziam ideia onde, dei comigo a pensar como gostaria de ser apenas um simples papel.
Quando chegasse o fim da minha utilidade, passar-me-iam por uma daquelas máquinas que destroem em fitinhas e com alguma sorte novamente um papel branco.
Quem sabe não teria a sorte de um dia sentir as carícias de um aparo e perpetuar a minha existência numa qualquer estante.
Que bom seria sentir-me de quando em vez escolhido e desfolhado por um dedo indicador.


J. Nobre
2002

sexta-feira, setembro 24

A paixão de Francisco


A felicidade é como a beleza de alguns lugares. De tão intensa e arrebatadora, só o é de facto quando não se convive com ela.
Era este o pensamento de Rodrigo quando contemplava uma paisagem de verdes e ocres, contornada a cinza pelos muros que sustêm os socalcos de Sortelha.
Na lassidão que o tempo assume neste lugar e inebriado de tanta beleza, o olhar de Rodrigo repousou no azul celestial.
Sentiu Luísa aproximar-se. Deixou que pensasse não a ter visto. Um abraço e uma palavra sussurrada... Sentado na muralha do castelo, inclinou-se ligeiramente até sentir o seu corpo.
Por momentos as palavras tornaram-se inúteis. Enleados na quietude bela e bucólica daquele retiro as emoções não se exprimiam desse modo. Bastava-lhes estar, e ter a cumplicidade do vento ao cair da tarde.
Por uma estrada, de origem romana ladeada por casas em granito, que emergiam do chão sem quase se dar conta, ambos regressaram à casa Árabe, sítio escolhido como alcova dos seus desejos.
Rodrigo não tirava os olhos da encantadora Luísa. Não esperava que ela falasse ou deixasse escapar um suspiro, mas aguardava um outro qualquer sinal.
Calcorreando as calçadas romanas daquela aldeia medieval, sentia Luísa distante, inebriada pelo efeito do chamon que não resistiu em experimentar. Consentiu que lhe percorresse as linhas do seu corpo belo e sensual, com as mãos, com os olhos...
Reparou no sorriso de Luísa ao entrar na porta da casinha. No umbral estava cinzelado 1373. Um olhar contemplativo e enigmático... Provavelmente estaria a questionar-se das razões que a trouxeram ali. Um lugar inóspito e arrebatador, cheio de referências históricas e paisagens deslumbrantes mas tão distantes de Lisboa.
Que razão teria feito Luisa consenti-lo?... Os seus belos vinte e dois anos, ávidos de vida e exaltações, sugeriam-lhe essa inquietante questão.
Apesar de Luísa oscilar entre o carinho e a indiferença, entre a oferta e a recusa, Rodrigo desejava-a cada vez mais, sobretudo quando se mostrava distante e inatingível.
Entraram na « nossa casita » como ela lhe chamava. O deslumbramento era visível nos seus olhos quando observava e tocava o atavio ancestral espalhado pela casa.
Tinham acabado de fechar a porta, a pouca luz que trespassava a renda das cortinas de linho, levou-o a rodar uma pedra mais saliente que a intuição lhe fez julgar tratar-se de um interruptor.
De repente sem saber de onde, ténues raios de luz incidiam sobre uma espécie de toga em tons arroxeados, que tinha no centro, bordada a cruz da Ordem dos Templários.
Luísa deu conta do fascínio que essa visão provocou em Rodrigo e interpôs-se entre ele e a toga, como se quisesse tornar-se o único motivo dos seus deslumbramentos.
O seu corpo insinuado pela luz, na súbita transparência do vestido, faziam crescer o desejo. Amaram-se por uma noite.
Sortelha tornou-se para Rodrigo numa das suas grandes paixões. Talvez a mais perene.
Capaz de inventar qualquer Luisa nos seus devaneios oníricos.


J.Nobre.

terça-feira, setembro 21

O Ensaio do autarca


A única mesa não preparada foi curiosamente a escolhida pelo homem que acabava de entrar no restaurante. Pelo porte, pela voz altiva, pelos gestos de veneração dos presentes tratava-se certamente de alguém muito importante nesta terra que o meu amigo António visitava pela primeira vez.
Perante o olhar perplexo do meu convidado, o presumível notável, ele próprio, com as suas próprias mãos, pôs a mesa. Um gesto de grande humildade que não deixou ninguém indiferente.
Revelei ao António a verdadeira identidade da personagem. O seu sorriso desdenhoso revelava ser profundo conhecedor da essência das atitudes dos políticos, habilidosos no culto da personalidade conveniente.
Entendeu rapidamente o motivo da escolha daquela mesa. Tornou-se por momentos num excelente elemento cenográfico. Aquela demonstração de humildade não era mais do que um ensaio na arte do fingimento, um entre muitos outros que se seguiriam para recolocar uma peça em cena.
A cerca de um ano da estreia os ensaios tinham começado.

sábado, setembro 18

Vamos requalificar a Digueifel

Uma simples e pacata aldeia.
Emerge na sua simplicidade uma capela do século XVIII, única e inteira reminiscência do passado, mas que nesta pequena aldeia se assume como um anacronismo dissonante perante um aglomerado incaracterístico de casas. Um candeeiro de luz amarela de baixa intensidade torna o largo da capela ainda mais anacrónico acentuando essa dissonância.
Bem perto, no mesmo largo, uma fonte centenária desvalorizada, uma frondosa árvore assassinada pelo cimento, ao lado de outra sobrevivente que chora agora a sua morte. Taparam-lhe a vida com bancos circulares que consentem os rabos dos censores da vida alheia.
Homens que falam do tempo, das pessoas, do nada que preenche os seus dias, dos resíduos domésticos despejados nas valetas destinadas à drenagem das águas pluviais, da ribeira conspurcada transformada em defecador público, dos terrenos abandonados que há muito se tornaram em latrinas privadas, das famílias que se travam de razões em questiúnculas provocadas por uma sarjeta ostensivamente obstruída.
Esta é uma simples aldeia do concelho de Oliveira do Hospital. Sem peso eleitoral como tantas outras. Onde a insatisfação popular se resolve com visitas fugazes e sorridentes dos autarcas incompetentes, ubíquos e habilidosos.
Isso de assegurar às povoações as condições mínimas de higiene e salubridade é um conceito demasiado urbano.
Tratem vocês disso respondeu o edil ao obstrutor da sarjeta.
É o que o tio António faz todos os dias à mesma hora quando se dirige à calhada e evacua os excedentes do que o mantém vivo.
O que é que eu posso fazer? Aquele pedacinho de terra do meu quintal já é seu por uso capeão. Vou eu agora contrariar hábitos milenares de vida?
Saneamento, saúde pública... Tratem vocês disso, disse o edil.
Muito já foi feito. Então e aquele candeeiro oitocentista, só visto nas mais belas e nobres vilas deste País? Nestes tempos da requalificação vamos mas é requalificar a Digueifel. O Candeeiro já lá está. Tem que se começar por algum lado.
Os esgotos o saneamento, a higiene pública, isso pode esperar.
Nada como um adorno ou a poesia para apaziguar as inquietações destes pedantes visionários que invadiram as nossas aldeias.

Viver em certa aldeia pobrezinha
Longe dos homens, longe da Cidade
Levantar cedo e logo manhãzinha
Ir ao cantar do galo até à herdade

Mourejar todo o dia e à tardinha
Sem gestos de etiqueta ou de vaidade
Subir ao monte, entrar na capelinha
E rezar à Senhora da Piedade.

Não ter mais sonhos! Não ter um desejo!
Amar as flores, o Céu, amar a Terra
Do Sol, no poente receber o beijo.

E nessa paz divina, Sacrossanta,
Ter como amigo um belo cão da Serra
Por confidente...uma cabritinha branca!

(«O Meu Sonho» de Inácia Cid Teles)

Plágio

Francisco estava cansado de fazer o papel de barata tonta, perdido em porquês, em justificações, mas sobretudo farto de representar. Queria tão simplesmente ser ele próprio, egoisticamente assim, morrer e continuar vivo o suficiente até obter algumas certezas. Esclarecer algumas dúvidas que lhe tiravam o sono, dizia ele.
E foi justamente a satisfação da sua curiosidade a causa de um dos maiores embaraços da noite.
A Isabel, sem nunca ter demonstrado qualquer jeito para jogos de pontaria, de um só arremesso conseguiu enfiar-lhe o líquido pela abertura da camisa, como sendo a mais adequada resposta a tão insultuosas dúvidas.
Enquanto solteiros bastar-lhe-ia algum do humor que lhe era habitual, mas na qualidade de casada e rodeada de quem estava teria de ser contundente, para que não restassem dúvidas acerca da sua irrepreensível conduta. Deixou no entanto bem claro a todos os comensais, que tal probidade não resultava por merecimento do seu companheiro.
Enfim, um lamentável e sórdido incidente que apesar de tudo não conseguiu estragar o repasto. Inebriados que todos estavam daquele delicioso néctar chamado Monte Velho, no dia seguinte tudo seria desculpável.
Falava-se ao jantar sobre Oliveira do Hospital, ou alguém se lembrou de o fazer para amenizar o desagradável da situação, com o natural pretexto de justificar à Susana as diferenças desta cidade do interior que tinha tanto de soberba como de ignorante. Susana com ironia acutilante, rapidamente desmascarou o plágio do Francisco, referindo que Virgílio Ferreira tinha escrito exactamente o mesmo sobre Évora na Apariçãocidade absurda e reaccionária, empanturrada de ignorância e soberba”.
Francisco tentou salvar-se dizendo que não tinha lido o livro e como a mentira tem perna curta de imediato se auto-denunciou. Noutra alusão ao livro de Virgílio Ferreira a derrota final surgiu na resposta à pergunta de Susana acerca do máximo de porcos que um Oliveirense poderia ter.
A pergunta insidiosa e a risada geral irritaram o Francisco. No rubor da vergonha, as migas de bacalhau, a tigelada e sobretudo o Monte Velho, foram as únicas razões que o detiveram.
A ideia sobre Oliveira até era verdadeira
O que ele não tinha era o talento de Virgílio Ferreira.

quinta-feira, setembro 16

Atalhos

Luto todos os dias contra a vontade de me ir embora.


Aqueles momentos de paz e tranquilidade que imagino num lugar distante, parecem-me sempre impossíveis quando pesados os prós e os contras, como numa balança na qual um dos pratos tem a fuga e outro os valores éticos.
O ponteiro aponta o meio onde não está a virtude. Um ponto zero no seu lugar. Recomeçar o percurso depois da escolha errada. Depois dos atalhos trocar o incerto pelo certo.
Hoje poderá ser o último dia do príncipio da minha vida. Ou melhor da primeira parte.
Como quem vai fumar um cigarro no intervalo de um filme.
Momento zero.
Talvez ainda seja possível. Fazer um 'scandisk',escolher os 'files' que não interessam e mandar tudo para a 'reciclagem'. Revê-los na esperança de alguma coisa que ainda valha a pena e apagar o que não interessa num 'delete' definitivo e irreversível. Talvez...
Nesta convulsão que me assola a cabeça olho súbitamente para a minha mão e reparo que ainda me falta uma passa das doze. Um ritual patético que se faz todos os anos. Não me lembro que onze desejos eu pedi.Provávelmente nenhum.Sobrou uma. Nunca me perdoaria não cumprir uma promessa. Seria aliás impossível.De repente dou conta que mesmo no pressuposto do tal 'delete', haveria afinal um ficheiro inacessível. Um bip estridente e a mensagem de 'access denight'. Um ficheiro que guardava, solidariedade, paixão, amizade, livros, lágrimas, sofrimento, arrebatamentos, sei lá o que mais ...
Talvez não queira que seja possível.
Coloco lentamente a última passa na boca.
Não podia ter passado melhor o ano.