segunda-feira, outubro 18

Expiações da memória

No silêncio pardo da tarde só o ruflar dos pardais suspende a quietude daquele lugar. O murmúrio da água, aqui e ali desviada pelos atalhadoiros, os sulcos na ravina desenhados pela corrente, construiu ao longo dos tempos o mais encantador dos refúgios, o lugar perfeito para o que resta de mim, onde torno quando posso, mas sobretudo quando preciso.
É ali, no bucólico Chão do Pinheirinho que a minha copiosa memória me traz uma recordação feliz de um passado distante, e me reconforta das agruras da vida: A Quiana.
Se porventura existe em mim alguma capacidade de amar devo-a a ela.
Tenho hoje e tê-la-ei sempre comigo, numa imagem tão viva e fielmente registada cuja revelação só fica enegrecida pelo amargo sentimento de quase nem ter dado conta da sua morte. Culpar os reveses da vida, é uma escusa inaceitável.
Perdoa-me Quiana.

segunda-feira, outubro 4

Vodka com laranja

Fácilmente entendemos que o vocábulo iniquidade é inapropriado quando falamos de favorecimentos pessoais e usamos o que é nosso. O que não é a mesma coisa quando usamos o afecto como critério e o que é de todos como meio. Aí a falta de equidade já não é só imoral como abusiva e absolutamente inadmissível.
Refiro-me concretamente aos vergonhosos favorecimentos que resultam das relações de amizade no exercício do poder autárquico.
É hoje mais do que nunca iniludível o expediente político de utilizar como embuste as diferenças ideológicas para esconder habilidades.
Brindemos às velhas amizades!
J. Nobre

sábado, outubro 2

Dissertações sobre uma Agenda Cultural

Atavios gráficos em que o autor é exímio tornam este livrinho encantador. A capa, a sobriedade das cores, a subtileza das cambiantes azuladas, conferem-lhe uma leveza condizente com a ligeireza do conteúdo.
No interessante design gráfico, impresso em papel cochet 135 gramas, ressalta o azul celestial com algumas estrelas cintilantes a despontar na indefinida linha do horizonte.
A visão irónica e subliminar do autor está expressa na hábil escolha das cores. Para colorir o início do trimestre uma cor forte: o vermelho. A cor do sangue, da vida, simbolizando a vitalidade na expectativa do anúncio das propostas culturais, mas também a cor da vergonha, que ruboriza as faces de quem ama a cultura e a terra onde vive e se desilude pelo vazio do anunciado.
Para Novembro e Dezembro novamente o azul. Um azul que começa forte, colorindo a esperança mas que rapidamente se matiza num azul-marinho, onde a mesma se afoga.
Sobre o amarelo pálido, desmaiado do IOR 80 gramas que compõem o interior deste fantástico livrinho, folheiam-se as desilusões e defraudam-se as expectativas logo de início. Por baixo das cambiantes violáceas do cabeçalho, evocando as cores do Município, destaca-se o sorriso e a gravata do edil. Não é por acaso que o seu assessor de imagem lhe terá sugerido para a mão direita uma caneta branca pousada curiosamente na mesma alvura dos papéis.
Terá sido sobre aquela secretária e num daqueles papéis brancos, que o autarca terá feito o rascunho das suas brilhantes notas editoriais, onde o próprio refere com particular destaque o Ciclo de Teatro do Outono. Numa excelente estratégia de planificação da política cultural da edilidade, as peças que darão forma ao evento, surgem referidas como a designar para que o factor surpresa lhe confira um brilho especial e faça estalar as castanhas na boca dos espectadores. O mesmo fruto de cúpula esférica e espinhosa do nobre castanheiro, que o responsável pela composição do livrinho, utiliza como adorno gráfico no anúncio dos inúmeros magustos e festas da castanha, um dos principais eventos do trimestre, não esquecendo os vários torneios da sueca que proliferam por essas aldeias fora.
Então se eu soubesse, não poderia ter tirado a minha querida Digueifel do anonimato?
Em próximas edições da Agenda Cultural vou aceitar o desafio do Presidente. É que o bar da Associação da minha pacata aldeia é frequentado, seguramente, pelos melhores jogadores de sueca do concelho.

J. Nobre