quarta-feira, dezembro 29

26 de Dezembro de 2004

Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.
Mas ninguém diz violentas
As margens que o comprimem.
[ Bertolt Brecht ]

Por algum motivo, ontem ao caminhar reparei nas folhas arremessadas vorazmente pelo vento, como um colérico valsar da Natureza. A nudez dos plátanos, o cair dos seus últimos e mais resistentes atavios, os súbitos murmúrios da noite pareciam cânticos suaves e piedosos carpindo a tragédia.
A imagem brutal de um filho roubado pelo mar apressou a caminhada. Queria fugir às ondas de comoção, aos cânticos plangentes arrastados pela catástrofe, à ópera do infortúnio, à complacência solidária e a todas as demais aliterações emergentes.
Queria muito ouvir o som da porta fechar-se atrás de mim, na esperança que a clausura me ajudasse ao esquecimento, mas depois da marulhada da desgraça, permaneceu a imagem flutuante da nossa pequenez perante a vida e a Natureza mas acima de tudo o tributo que todos, mais tarde ou mais cedo, lhe devemos.

sexta-feira, dezembro 24

25 de Dezembro de 2004

Mais um pedaço de matérias vegetais transformadas num alvo disponível ao registo de coisas que não bastam ser ditas.
Palavras tristes, desenhadas vagarosamente sobre o nascer de um novo dia, uma nova passagem no entretecer dos fios que se apertam, se entrelaçam e se apertam novamente.
Bastava dizer que está um lindo dia.
Bastava falar das paredes que me enclausuram numa dor inexprimível. Que o Natal é uma lâmpada pendurada por um fio, que este frio adstringente de Inverno me impede de escrever coisas que não bastam ser ditas.
Há dois mil anos atrás, poderiam ter evitado este meu tormento, este torpor no encontrar de coisas para escrever, quando olho pela escuridão da noite a intermitência das luzes que se mostram compassivas por esta inércia.
Culpo a Trincadeira, o Aragonês, o Alicante Bouschet e o Cabernet Sauvignon, desta minha ausência, mas a minha mão permanece sóbria e disponível para a insistente espera das palavras que não saem. Porque hoje, para além de um lindo dia, haveria mais coisas para escrever.
Só que as solitárias luzes lá fora, emprestando adornos que se repetem, solicitam outras veleidades, não dando conta que também eu estou sozinho. Na companhia, é certo, de Vivaldi, perturbado de quando em vez pelo crepitar da lareira, do Aragonês, da Trincadeira, inebriado de solidão, longe dos rituais, dos indigentes abrindo os telejornais, da sopa dos pobres, da solidariedade representada e de outras hipocrisias.
Vou correr as persianas.
Não quero mais ver as luzes intermitentes e os Pais Natais pendurados nas varandas.
Fico-me com o Aragonês, a Trincadeira, o Alicante Bouschet e o Cabernet Sauvignon, num subtil, encorpado e aveludado néctar, que me proporciona um doce desalinho.
Que persistam as palavras que me esperam, que o que me apetece tão somente é escrever que hoje esteve um lindo dia.
Agora vou dormir!

quinta-feira, dezembro 16

Precisei de lá voltar

Ao sítio que dá sentido ao pouco que me resta e me faz sentir o que ainda sou, para além dos despojos que só aguardam o fim.
Desta vez levei algum tempo para me distrair do olhar compassivo da natureza. O murmúrio da ribeira, o queixume das folhas, o ruflo das aves, soavam a gritos resmungados de acusações ininteligíveis. Mas ao menos ali, na quietude daquele lugar, a dor é mais suportável e a culpa torna-se redimível pela evocação da felicidade na lonjura do tempo.
Olho-me com piedade, pelo desleixo e degradação, mas ali, no Chão do Pinheirinho consigo imaginar-me pequeno, irrequieto mas feliz. Com a agilidade para desafiar o perigo, correndo de levada pelos muros da ribeira, numa alegria esfuziante, capaz de me levar ao choro, só de o lembrar.