quinta-feira, maio 26

O olhar da rã

De um salto a rã coloca-se a um escasso par de metros de mim. Acho que ela me olha, sem no entanto parecer ver-me. Fica por uns instantes. Na fugacidade do momento em que afasto uma mosca, ela já lá não está. O seu mergulho no rio convoca o meu olhar. Vejo a propagação ondeante dos círculos na água e por momentos todo eu me suspendo nessa contemplação.
Penso na vacuidade literária enquanto releio o papel escrito no refúgio da tarde. Convidei a escrita para companhia e recordo o estranho declinar dessa veleidade dada a beleza inspiradora do lugar.
Comodamente instalado na minha “Cormoura” à procura do fresco sereno das águas do Alva, na sombra da folhagem dos salgueiros e com o propósito conseguido de uma solidão desejada, tinha tudo para que a minha ‘BK 77’ deixasse na alvura do papel a mais linda narrativa do vazio. O vazio lá não existe, digo eu aqui e agora, burguesmente instalado frente ao meu PC.
Lá não existe o vazio.
Talvez por isso, recordo agora, a rã tivesse vindo até mim condoída pelo meu olhar perdido de sofrimento.
Talvez por isso a grilhada dos insectos, o ruflo dos pássaros, o murmúrio do rio e das folhas, me pareçam agora resmoneios da Natureza à minha estúpida incapacidade de ver o que me está mais próximo.
Talvez por isso a obstinação dos refúgios na procura das palavras, ou quem sabe encontrar nas palavras o mais redentor dos abrigos.
Pois é Jean-Paul, “as coisas são inteiramente o que parecem – e por trás delas… não há nada.”. Quase me convences.
“Exister c’est être là, simplement”.

terça-feira, maio 17

O refúgio das palavras

Há dias para mim que a escrita não passa de um exercício que utilizo com frequência. Deixando fluir vocábulos só com a preocupação da sua coerência semântica, escrevo tentando exprimir ideias sem destino, como se rabiscasse desenhos numa folha para arrumar o pensamento.
Lembro-me de um dia ter ido ver o mar. O que a memória me oferece mais facilmente é o caminho pelas dunas, feito de tábuas de pinho tratadas e envelhecidas por cujas juntas crescia a erva. Cabisbaixo calcorreava o sinuoso caminho quase esquecido do mar. Sem a percepção do cheiro a maresia, aquelas ripas de madeira que rangiam sob os meus pés eram a única cumplicidade do momento. Parei no cimo da última duna, da última tábua do percurso, e já ali, imóvel frente ao imenso azul, entre o crepúsculo rosáceo do poente e a penumbra da minha alma, ouvi finalmente o marulhar das ondas, o cheiro a maresia e o sorriso surgiu após o encantamento. Nem tudo tem que fazer sentido, pensei eu. Na escrita também gosto de calcorrear as palavras sem destino. Imperceptível enquanto escrevo, ele acaba no limiar da sensação por se manifestar naturalmente.