terça-feira, setembro 26

Atalhos

Luto todos os dias contra a vontade de me ir embora.
Aqueles momentos de paz e tranquilidade que imagino num lugar distante, parecem-me sempre impossíveis quando pesados os prós e os contras, como numa balança na qual um dos pratos tem a fuga e outro os valores éticos. O ponteiro coloca-se precisamente no meio. Para mal dos meus pecados não é aí que está a virtude.
O meio é sempre um ponto zero para quem, como eu, fez a primeira parte do percurso, escolhendo os caminhos errados, trocando o certo pelo incerto, fazendo atalhos. Como diria a minha saudosa avó, quem se mete por eles mete-se em trabalhos.
Hoje poderá ser o último dia do princípio da minha vida. Ou melhor da primeira parte.
Como quem vai fumar um cigarro no intervalo de um filme.
Momento zero.
Como se isso fosse possível. Fazer um 'scandisk',escolher os 'files' que não interessam e mandar tudo para a 'reciclagem'. Revê-los na esperança de alguma coisa que ainda valha a pena e apagar o que não interessa num 'delete' definitivo e irreversível.
Que bom seria...
Nesta convulsão que me assola a cabeça olho subitamente para a minha mão e reparo que ainda me falta uma passa das doze. Um ritual patético que se faz todos os anos. Não me lembro que onze desejos pedi.
Provavelmente nenhum.
Sobrou uma. Nunca me perdoaria não cumprir uma promessa. Seria aliás impossível.
De repente dou conta que mesmo no pressuposto do tal 'delete', haveria afinal um ficheiro inacessível. Um bip estridente e a mensagem de 'access denied'. Um ficheiro que guardava, solidariedade, paixão, amizade, livros, lágrimas, sofrimento, arrebatamentos, sei lá o que mais...
Desculpa lá avó, mas afinal existem atalhos pelos quais vale arriscar.
Coloco lentamente a última passa na boca.
Não podia ter passado melhor o ano.
Joaquim Nobre

domingo, fevereiro 5

A Valsa das gramíneas

Olho em baixo o centeio bailando ao som do vento. Pareceu-me uma valsa. Lento, alegreto, alegro, num compasso de três por quatro, o centeio valsava naquele espantoso lugar onde o tempo vive à parte, muito lentamente.
Na elegância desse convite à valsa, insinuante e provocador, aquela visão das bailantes gramíneas trouxe-me um corpo de mulher visto na sua nudez. A mesma macieza, o mesmo desabrigo convidando a carícia e por momentos apelando à precipitação naquele vale profundo e conciliador das cordilheiras.
Subi e desci, ora em baixo ora em cima, suspenso de quando em vez na contemplação dos planaltos até o arrebatamento final, no assomo de novos horizontes.
E foi aí que fiquei, na saciedade do depois, na sensação indizível do fim que não termina, que se prolonga para além do prazer, infindável como a linha do horizonte.

Joaquim Nobre

terça-feira, novembro 8

O Lama do Peru


Roberto Iza Valdes said...

Libertad es el derecho que todo hombre tiene a ser honrado, y a pensar y a hablar sin hipocresía. En América no se podía ser honrado, ni pensar, ni hablar. Un hombre que oculta lo que piensa, o no se atreve a decir lo que piensa, no es un hombre honrado. Un hombre que obedece a un mal gobierno, sin trabajar para que el gobierno sea bueno, no es un hombre honrado. Un hombre que se conforma con obedecer a leyes injustas, y permite que pisen al país en que nació lo hombres que se lo maltratan, no es un hombre honrado....Hay hombres que son peores que las bestias, porque las bestias necesitan ser libres para vivir dichosas: el elefante no quiere tener hijos cuando vive preso: la llama del Perú se echa en la tierra y se muere, cuando el indio le habla con rudeza, o le pone más carga que la que puede soportar. El hombre debe ser, por lo menos, tan decoroso como el elefante y como la llama.
--José Martí y Pérez

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Ainda a propósito da interpelação acerca do direito à opinião não resisti a partilhar este comentário que recebi ao meu último texto.
Por aqui o conceito da honorabilidade não é entendido nessa perspectiva, e muitas vezes até confundido com notoriedade.
Esta linda metáfora do escritor e político cubano José Martí y Perez, sensibilizou-me.
Mas até podia ser contada em «quíchua» no idioma mais remoto ainda utilizado na terra do lama, ou em qualquer outra lingua nativa da Selva Amazónica porque seria porventura ainda mais bela.
De repente lembrei-me de Sepúlveda e do «velho que lia romances de amor».
Obrigado pelo comentário!
Adorei a evocação de José Martí y Perez.

J.Nobre

segunda-feira, outubro 31

Pôr ou não a cabeça no cepo


Foi no contexto de uma análise ao momento político aquando das eleições autárquicas que me propus escrever um pouco sobre o cenário do concelho onde moro.
Escrevi na altura e muito antes da contagem dos votos que era por demais previsível o seu resultado.
Aliás a estratégia da força mais capaz de assumir a alternância, também o previa no seu mote de campanha. Por extrema ironia e face a essa previsibilidade, não lhes ocorreu melhor ideia do que apelar à coragem dos eleitores.
Para além da evidente fragilidade da escolha, a que chamei o doce sorriso da mudança, a estratégia acabou por se tornar um tiro no próprio pé, valorizando quem o não merecia, deixando escapar a ideia subliminar que a mudança não era emergente, necessária e desejável.
A não ser, e julgo não ser o caso, haja em Oliveira um qualquer deficit democrático que torne essa saudável alternância inatingível e parece-me evidente não ser preciso assim tanta coragem para o desejo de mudança.
É esta a resposta que se me oferece, perante uma altercação que não provoquei, e que lamento ser apenas por mim assinada.
Meu caro amigo e anónimo interlocutor, criar este post, resultou muito mais do meu gosto pela palavra escrita, mesmo quando ela se torna incómoda, do que pela intervenção política, área para a qual não me sinto particularmente vocacionado. Mesmo respeitando a ideia romântica de que a política também se materializa na opinião e noutras atitudes quotidianas, deixo por respeito à honestidade, o seu exercício para os mais capazes.
Pôr a cabeça no cepo, ignorando esse valor, como infelizmente muito acontece por aí, não só precisaria de coragem, como seria a mais imbecil das ambições.
Tivessem todos os candidatos a mesma decência e estaria o concelho bem melhor.
Termino com a certeza de que nunca me faltará a coragem no momento da escolha, quando surgir alguém a quem reconheça qualidades para tirar Oliveira do Hospital do marasmo em que mergulhou nos últimos anos.

Joaquim Nobre

Nova interpolação


Anonymous said...
Caro amigo,

Não questionei, não questiono, nunca questionarei a sua relação com o trabalho, como pode depreender da minha mensagem.
Continuo no entanto, com a mesma liberdade e civilidade que o caracteriza, a pensar que quem não está satisfeito com o rumo dos acontecimentos tem o dever, e por ventura a obrigação de os alterar, e em relação ao caso a que nos referimos só existe uma alternativa - "pôr a cabeça no cepo", ou seja assumir a sua disponibilidade, reunir uma equipa e definir um projecto.
Depois, democraticamente, o povo decidirá, como aliás tem feito desde o 25 de Abril.
Melhores cumprimentos


terça-feira, outubro 25

A minha resposta ao anónimo


Porque não me disponibilizo?
Provavelmente por decoro.
Não fosse sentir-me inábil para tão nobre missão de servir o povo, utilizando a sua expressão, até me poderia tentar a tão grande veleidade. Acontece que tenho consciência dos meus próprios limites, ao contrário de muitos. E isso contraria a suposta superioridade com que me mimoseia.
Lembro o meu caro interlocutor anónimo que quando me sinto doente vou ao médico, o que não me impede de saber quando necessito de o fazer.
Não precisamos de ser doutos para ter espírito crítico, capacidade de observação, direito interventivo, com civilidade como é aliás meu atributo.
E é precisamente o reconhecimento desse direito, a melhor forma de mostrar respeito pelos outros.
O povo que elege quem se arvora de o servir merece essa consideração, senão que sentido teria o voto?
Retribuo os cumprimentos, mas com uma ligeira diferença de estilo.
Chamo-me Joaquim Nobre e também trabalho.

Quem és tu romeiro?


«Comentário de um anónimo ao meu post «Mais do mesmo»

De facto é mais fácil falar do que fazer.
Mas porque é que um ser tão diferente, tão superior, não se disponibiliza para servir o povo e levar o concelho para o topo, seja lá o que for esse conceito na sua mente.
Ás vezes dava tudo para ver certas pessoas, que não sabem senão "botar abaixo" com responsabilidades, para depois poder aferir da sua real capacidade.
respeite os outros. respeite quem trabalha.
Melhores cumprimentos.

quinta-feira, setembro 29

Mais do mesmo

Oliveira é seguramente uma das terras onde a competência mais se tem afastado do poder emergindo no inevitável circo politiqueiro local, as figuras mais inesperadas. Todos sabemos que gerir os destinos de uma autarquia sem um projecto estratégico, com tanta parcimónia e falta de ideias, os níveis de exigência para se apresentar uma potencial alternativa não serão muito elevados, mas é francamente constrangedor, a pobreza das novas propostas para tentar interpolar este marasmo habilmente iludido pelo actual edil que se tornou mestre na arte do nada.
Dir-me-ão que aqui não é muito diferente de outras autarquias, que a maioria dos autarcas não tem qualquer experiência para o cabal desempenho desse importante cargo e será mesmo inútil enfatizar que os concelhos do interior são ainda os mais necessitados de propostas realmente inovadoras, porque também são, para mal dos nossos pecados, os mais vulneráveis à cabotinagem política.
Ficam para já os lugares comuns, os out-doors, hoje mais acessíveis pelo crescimento das novas tecnologias, a vacuidade das mensagens, a vaidade dos protagonistas, mas acima de tudo a triste perspectiva de mais do mesmo.
Quando será que os eleitores serão capazes de ignorar as hábeis e insidiosas técnicas de imagem no momento das urnas? Hoje tais habilidades nalguns casos indecorosas e risíveis, ainda elegem autarcas, mas tenho muita esperança que o futuro tudo mude e que por exemplo, o auto elogio dos proponentes se torne a mais grotescas das estratégias.
Nessa altura serão os eleitores a classificar os autarcas de competentes! Por ora basta que eles se afirmem como tal.
Para os que dizem por aí que não votam por falta de alternativas, poderá ser essa, a atitude mais inteligente. Sou dos que advogam que não votar também é intervir, mas sobretudo exprimir uma vontade. E já pensava assim muito antes do nosso prémio Nobel.

terça-feira, setembro 20

Coragem para mudar

Há uns tempos atrás, os mais atentos recordar-se-ão, a audácia ficou mais longe do poder, quando teve o atrevimento de usar um insulto à boa maneira do PREC. Linguagem abusiva e desajustada aos nossos tempos que acabou por eleger a ponderação como o critério mais natural para o perfil do melhor candidato.
O sorriso é hoje a doce imagem da mudança.
É de facto preciso muita coragem para mudar, mesmo quando essa mensagem está acompanhada de um belo sorriso. É que mesmo ao lado repetem-se em grandes dimensões auto-elogios capazes de fazer morrer de inveja o mais mediático dos candidatos. Competência, honestidade, trabalho... Valores inquestionáveis, e expostos assim, em grande formato, relidos todos os dias enquanto contornamos as rotundas ou esperamos o verde dos semáforos, só por manifesta má vontade não acreditamos. É aquela velha ideia de que uma mensagem várias vezes repetida se torna uma verdade absoluta.
Corro o risco de ser mal entendido mas não consigo evitar o pensamento que o avanço feminino, como alternativa no apelo do poder, faz todo o sentido num concelho como este, onde as grandes ideias se resumem ao adorno. Não hesito nem um segundo em admitir que qualquer mulher saberá muito melhor prosseguir esse grande desígnio autárquico.

segunda-feira, setembro 19

Novamente o boletim e a saudade do Outono

( escrito em 19/09/2004 )
Prefiro os dias outonais, em que as folhas rodopiam em círculos por entre as estátuas e os bancos dos jardins, ao vazio quente dos tristes dias estivais de Oliveira do Hospital.
Uma terra onde resistem ao descuido, sinais de identidade e história que nos conduzem à nostalgia. Indeléveis sinais de outra cidade, de outros tempos, com outros protagonistas.
Prefiro o Outono em Oliveira, pela sensação do regresso ao escuro, que a meu ver a favorece e lhe confere a sua verdadeira essência. O cheiro a chuva, a escuridão prematura, os silêncios, a evocação do antigo, o convite à poesia, tudo me ajuda a esquecer o marasmo a que votaram esta terra.
Sinais destes tempos, em que as grandes ideias autárquicas se resumem a um jardim, uma praia fluvial, um calcetamento, uma fonte. Oliveira desliza numa letargia enfeitada com flores, uma passividade extrema, sem acontecimentos nem expectativas, mas exemplar no adorno e na requalificação dos espaços.
Requalificar, reconstruir, repensar... O tal prefixo que pressupõe repetição e no contexto das minhas reflexões disfarça a incapacidade de fazer novo, construir ou mesmo pensar.
O problema nem é tanto a ideia do refazer melhorando, como é bom exemplo o esforço em repor a dignidade perdida a espaços tão belos como Avô. Grave é não fazer, triste é a sensação desconfortante de ver um concelho deambular num deserto de ideias, entregue a um destino incerto, sem a expectativa de nada de novo. Particularmente quando assistimos bem perto, por um lado à enorme vitalidade na criação de novos espaços que proporcionam eventos, por outro mesmo, a capacidade de os realizar: Feiras Internacionais, concertos sinfónicos, torneios desportivos internacionais, teatro de qualidade e dimensão nacional, exposições dignas desse nome, certames que resistem às dificuldades da conjuntura, etc...
São os espaços que proporcionam os eventos e nunca o contrário. Mas para isso é preciso criá-los e isso talvez seja pedir muito a uma gestão autárquica tão parcimoniosa.
Enfim, a inércia, quando dela se tem consciência, pode muito bem tornar-se uma inteligente estratégia da incompetência. De facto quando nos habituamos a não esperar muito, qualquer irrelevância se torna, pelo inesperado, uma grande obra.
Talvez isso explique tudo ou então socorrendo-me de Eduardo Prado Coelho quando evoca Duras, e fala acerca do seu fascínio pela passividade extrema e pelas personagens que não agem e se deixam expor na pura exaltação de existirem. Na mitologia da escritora, escreve Prado Coelho, seres assim têm na passividade uma força imensa, sendo mais enérgicos pelo que não fazem do que pelo que poderiam fazer.
Talvez resida aí o segredo de toda esta submissão silenciosa ao que se passa, ou melhor, ao que não se passa em Oliveira do Hospital.

domingo, agosto 14

A desolação vista do Quénia

Sofro ao ver os socalcos negros da serra.
Pelos combros escuros desta paisagem triste e desoladora, conduzo serpenteando a estrada que se confunde no negrume das bermas.
Repouso por momentos nas águas límpidas do Agroal, no esquecimento impossível de quem lá se refresca, debaixo da ponte romana quase escondida na água, embiocada no xaile negro da montanha.
Desço até ao Vale Torno.
Ponho um CD de Mozart, uma sinfonia de profunda melancolia. Ouço o terceiro andamento, rápido em dó maior, grave, majestosamente grave. Paro por um instante, por necessidade, por uma lágrima, pelo som áspero e dramático da sinfonia.
Olho o vale, o casario sobrevivente, o xisto, uma jovem sentada num alpendre que me consente desconfiada. Mais em baixo um pouco de verde, único, resistente … A sinfonia é agora em sol menor, doce, subitamente doce.
Aumento o som do leitor. A única melodia que me apetece na desolação do meu olhar compassivo. Volto a olhar o único e sobrevivente combro verde e... Súbitamente o Quénia, o green de Windsor Golf and Country Club, os passeios de balão em Masai Mara, os leões, elefantes, leopardos e a música de Mozart que volta a ser grave, trágica, em si bemol maior.

quinta-feira, julho 28

Marialva

Recordo a primeira frase do último post: «Escrevo porque estou aqui». O início de uma escrita exigida pelo assombro. As palavras apetecidas na necessidade da partilha, como dedos que se entrelaçam e se apertam na súbita e surpreendente contemplação. Estou novamente num desses lugares. José Saramago escreveu que esta maravilha é um «ponto mediano entre o que passou e o que virá». Nessa mediania do que somos hoje, distantes das evocações sublimes de outrora, estas ruínas sugerem-me destroços de uma esperança há muito perdida, mas subitamente recuperada na contemplação de Marialva.
Uma cidadela de lendas e paixões, muito anterior a Portugal mas também local e testemunha da sua defesa brava e intransigente.
Apesar da fantasia lendária que povoa o imaginário histórico deste maravilhoso promontório, nem por um momento me apetece duvidar que o seu nome resultou de uma história de amor entre uma formosa moura e um garboso cavaleiro. A elegância e a sobranceria do castelejo, recolhido pelo azul diáfano do horizonte, as pedras nobres e granulares no papel de zelosas camareiras, fazem deste retiro uma bela alcova para qualquer marialva apaixonado.
Enquanto percorro o sinuoso caminho até ao cimo das ruínas, ladeado pelos muros altos de granito, ocorrem-me pensamentos sobre o sentido actual da defesa da identidade cultural deste país e quem sabe, a imagem plástica destas pedras habilmente sobrepostas que o tempo e os líquenes coloriram, me aconselhou a olhar estes sinais da história pela perspectiva da lenda.
Algo me fez sentir que estes lugares de ontem deveriam ser mantidos pela fantasia do conto. Talvez alivie a amarga sensação do hiato sugerido nas palavras de Saramago.

sexta-feira, junho 24

Ruínas em tons que descansam

Escrevo porque estou aqui.
Envolto em granito com um cheiro a antes de mim e adornos argilosos em tons que descansam.
Contornam pedras e seguram o passado com ferro envelhecido igual ao da cadeira que me suporta, em tiras entrelaçadas como as janelas de uma prisão medieval.
Olho o chão novo da esplanada, bujardado mas sem a paciência de outros tempos.
D. João I, implacável nunca perdoou o Alcaide de Castelo Rodrigo por ter tomado o partido de Castela. A crise dinástica de 1383 deixou marcas por aqui. Hoje seria a punição que estaria invertida e não as armas reais do brasão.
Voltai Conde de Andeiro e Dª. Beatriz, que isto por aqui não está fácil.
Ao contrário dos tempos da sucessão de D. Fernando paira hoje no horizonte a indiferença ou mesmo o desejo da invasão.
Uma pequena fonte de granito em forma de pódio descendente jorra água de surpresa, por momentos, talvez Mestre de Avis se tivesse mexido no túmulo zangado com a minha traição. Distraio a incomodidade momentânea nesta escrita dolorosa, exangue na procura de contar este lugar e recordo a Rota dos Peregrinos.
Passaram aqui os caminhantes para Compostela. Sinto-me hoje mais peregrino do que eles.
De lá de dentro da sala vem o Nocturno de Chopin.
Olho o horizonte, as vinhas, o restolho, a terra lavrada, amarela, ocre, aos quadrados, casas, carros e a merda da fonte de granito que volta a distrair-me… Ia a dizer que… Falar da quietude, desta diferença silenciosa e do tal cheiro a um tempo antes de mim.
Uma forte badalada no sino da igreja, a tal dos Frades que vieram de França. Uma só, meia de uma qualquer hora que aqui pouco importa. Pensar no tempo em Figueira é um desvario.
Porque preciso eu deste silêncio, desta aproximação ao passado?
Dois jovens chegaram e ficaram por pouco. Realmente o que pode atrair aqui os mais novos? Para eles a distância é maior. «Aqui não se passa nada…» ouvi-os dizer. O crepúsculo aproxima-se e o passado fica mais próximo, as lanternas de luz ambarina dão uma ajuda. Para estes jovens, este prelúdio da noite sugere outras coisas. Na sala ainda se ouve o Nocturno de Chopin.
De repente dou conta das ’corcódoas’ num canteiro mesmo ao meu lado. Era assim que em pequeno chamava à casca do pinheiro e que eu usava como material para com a ajuda de um canivete esculpir os meus barquinhos. Neste lugar de ontem, essa recordação levou-me a mão ao bolso e a alma à felicidade. Coisas minhas.
Nove badaladas. Aquela única de há pouco era a meia das oito. Quero ir embora. Este lugar foi perdendo algum encanto. Chegaram pessoas que falam cada vez mais alto em conversas que me afastam daqui. De Salamanca, do preço do gás em Espanha, do Iva mais baixo.
Conde de Andeiro volta que estás perdoado!

domingo, junho 5

O Realejo e as leituras de fim-de-semana

Passei por cima das medidas para combater o deficit, da polémica da acumulação de pensões e do seu peso político, dos espadas dos magistrados, do Não da França e da Holanda, e parei no realejo.
Que bela ideia a da Margarida. Chamou-lhe ‘Bibliambule’ e é um simples carrinho que transporta pela rua, palavras que ela oferece em voz alta.
Também lá vai o realejo evocando os músicos de rua, e esta simpática ideia de oferecer palavras, necessitou da sua manivela. A deambulação da palavra evoca o passeio ocioso dos músicos pelas vielas mais escondidas da vida.
Uma espécie de Barberi da poesia. Ao rodar a manivela ouve-se o acorde das palavras e nesta aparente alucinação quixotesca, Margarida encontrará certamente pelo caminho um ou outro Sancho Pança, mas tal como D. Quixote a sua paixão é bem maior que o medo do delírio.
Chamem-te louca e não te importes porque o desalinho é nos dias de hoje um sinal de inteligência.
As palavras, Margarida, nunca são excessivas.
Excessivo é o outro deficit.
Não receies por isso oferecer palavras porque essa gratuitidade nunca fará aumentar a despesa. No orçamento da poesia a receita é sempre superior.
Joaquim Nobre
2005/06/05

sexta-feira, junho 3

O apelo da escarpa

Percorri o caminho sinuoso com o olhar atento às minudências da flora da Serra da Estrela, na esperança de descobrir a tal planta de cinco pétalas que simboliza hoje a cidade de Seia. Por momentos julguei tê-la encontrado. Seia, onde o tempo pára e a saudade fica... recordo a frase.
Soube mais tarde que foi retirada do contexto, numa leitura apaixonada do criativo quando procurava palavras poéticas para a terra que começou por ser dos Túrdulos.
Agora estou aqui. Sentado em cima de Manteigas. Na algaraviada indecifrável lá em baixo o bater de uma porta, o grasno de um gaio, um latido e um choro de criança, são os sons que melhor se definem pela escarpa acima.
O meu pé suspenso oscila por cima da vila com o mesmo tamanho das casas. Penso numa tela, numa fotografia. Seria uma excelente ajuda mais tarde, quando a minha copiosa memória corroída pela idade quisesse lembrar o momento. Mas não! Trouxe apenas a minha ‘BK 77’ e um bloco A5. Numa das folhas brancas começo a descrever o que a minha alma alcança. Aqui no Miradouro do Fragão do Corvo os meus olhos vêem as cambiantes verdes da serrania a espreguiçarem-se na lonjura desse mesmo olhar, mas o que me interessa é escrever sobre a emoção de estar aqui. Quero cá voltar pela evocação dessas palavras.
Escrevo a emoção que sinto hoje, aqui. Este sentimento indizível duma felicidade que quase magoa, intenso mas leve para nunca ter perdido a sensação de suspensão nem o apelo da escarpa. Por baixo dos meus pés que têm o tamanho das casas de Manteigas, o terrível chamamento do despenhadeiro, num convite quase irrecusável do abismo.
A folha onde escrevo esconde essa tentação, mas erguida na linha do meu olhar, são as casas que se escondem e o apelo da escarpa que reaparece. Agora entendo a felicidade que quase magoa e o pouco que impede o desejo.
Porque só a escrita pode registar o que a alma vê, prefiro a escrita a tiracolo em vez da máquina fotográfica. Nenhuma foto me revelaria esta recordação.
Mais tarde quando a idade tiver feito estragos na minha memória tirarei da gaveta estas palavras, e vou querer voltar ao Fragão do Corvo.

Penhas Douradas, 2005/06/01
Joaquim Nobre

quinta-feira, maio 26

O olhar da rã

De um salto a rã coloca-se a um escasso par de metros de mim. Acho que ela me olha, sem no entanto parecer ver-me. Fica por uns instantes. Na fugacidade do momento em que afasto uma mosca, ela já lá não está. O seu mergulho no rio convoca o meu olhar. Vejo a propagação ondeante dos círculos na água e por momentos todo eu me suspendo nessa contemplação.
Penso na vacuidade literária enquanto releio o papel escrito no refúgio da tarde. Convidei a escrita para companhia e recordo o estranho declinar dessa veleidade dada a beleza inspiradora do lugar.
Comodamente instalado na minha “Cormoura” à procura do fresco sereno das águas do Alva, na sombra da folhagem dos salgueiros e com o propósito conseguido de uma solidão desejada, tinha tudo para que a minha ‘BK 77’ deixasse na alvura do papel a mais linda narrativa do vazio. O vazio lá não existe, digo eu aqui e agora, burguesmente instalado frente ao meu PC.
Lá não existe o vazio.
Talvez por isso, recordo agora, a rã tivesse vindo até mim condoída pelo meu olhar perdido de sofrimento.
Talvez por isso a grilhada dos insectos, o ruflo dos pássaros, o murmúrio do rio e das folhas, me pareçam agora resmoneios da Natureza à minha estúpida incapacidade de ver o que me está mais próximo.
Talvez por isso a obstinação dos refúgios na procura das palavras, ou quem sabe encontrar nas palavras o mais redentor dos abrigos.
Pois é Jean-Paul, “as coisas são inteiramente o que parecem – e por trás delas… não há nada.”. Quase me convences.
“Exister c’est être là, simplement”.

terça-feira, maio 17

O refúgio das palavras

Há dias para mim que a escrita não passa de um exercício que utilizo com frequência. Deixando fluir vocábulos só com a preocupação da sua coerência semântica, escrevo tentando exprimir ideias sem destino, como se rabiscasse desenhos numa folha para arrumar o pensamento.
Lembro-me de um dia ter ido ver o mar. O que a memória me oferece mais facilmente é o caminho pelas dunas, feito de tábuas de pinho tratadas e envelhecidas por cujas juntas crescia a erva. Cabisbaixo calcorreava o sinuoso caminho quase esquecido do mar. Sem a percepção do cheiro a maresia, aquelas ripas de madeira que rangiam sob os meus pés eram a única cumplicidade do momento. Parei no cimo da última duna, da última tábua do percurso, e já ali, imóvel frente ao imenso azul, entre o crepúsculo rosáceo do poente e a penumbra da minha alma, ouvi finalmente o marulhar das ondas, o cheiro a maresia e o sorriso surgiu após o encantamento. Nem tudo tem que fazer sentido, pensei eu. Na escrita também gosto de calcorrear as palavras sem destino. Imperceptível enquanto escrevo, ele acaba no limiar da sensação por se manifestar naturalmente.

sábado, abril 30

Inquietações

Li algures que o conhecimento não é um bem absoluto. Concordo! Que há outras formas de existência para além das cognitivas. Concordo! Que a Ciência atingiu capacidades demiúrgicas. Inquietante! Que jeito teria dado a Hitler essa capacidade. Ter-se-iam poupado muitos judeus. Hoje a sua loucura estaria conseguida e ninguém a acharia tão tenebrosa.
Tudo se teria transmutado pacificamente.
Meios homens, meios máquinas…
Defender a dignidade Humana, preservando a sua identidade, face ao perigo eminente da sua artificialização.
Releio: meios homens meios máquinas.
E depois?
A meia parte máquina dava-me muito jeito. Não me cansava tanto.
Continuo a ler: Está a nascer uma nova doutrina, depois de Hitler e depois de Francis Galton.
Não suporto continuar com isto. Fecho a revista.
Por momentos volto a ser eu, na essência dessa mesma identidade mas também na diversidade em que desejo existir.
Quero continuar com os meus devaneios oníricos, com a capacidade de contemplar o “Chão do Pinheirinho” e escrever sobre isso, ser capaz de olhar a minha própria fealdade e por momentos achar formosas as mais imperfectíveis falhas.
A propósito fiquem lá com um bocadinho de Albert Camus:
Todos os pensamentos que renunciam à unidade exaltam a diversidade. E a diversidade é o local da arte. O único pensamento que liberta o espírito é aquele que o deixa só, certo dos seus limites e do seu fim próximo. Nenhuma doutrina o solicita. Ele espera o amadurecimento da obra e da vida. Separada dele, a primeira fará ouvir, uma vez mais, a voz levemente ensurdecida de uma alma para todo o sempre liberta da esperança. Ou nada fará ouvir, se o criador, cansado do seu jogo, pretende afastar-se. Tudo isso se equivale.

quarta-feira, janeiro 5

A Magia Inconsciente da Memória

Os óculos pendurados no pote observavam-nos lânguidos e preguiçosos, resistentes ao vazio duma noite pouco falada. No silêncio da troca de um CD, as vozes na rua, o bater de uma porta, o crepitar da lareira no compasso da nova escolha musical do Manuel e o pote que continuava a olhar-nos condoído da estranheza de nós.
Copos partidos, deitados, virados, direitos, parados num tempo que não passa. Cristais perecíveis por distracção, mas perenes na vontade de os manter úteis à memória de tempos vividos.
Um relógio amarelecido com arabescos que apontam sempre a mesma hora. Ao lado o pote, os óculos escuros que lhe escondem os olhos no ocre bafiento do barro velho.
O som dedilhado da guitarra que vinha do fundo da sala, propagou um gato para junto de nós. Eriçou-se em curva contra as pernas do Manuel e perto da lareira olhou-nos esquivo e desconfiado ronronando por fim o seu consentimento.
O sossego silencioso da noite e das palavras que não se diziam, deixavam-nos estar por estar na penúltima noite do ano.
Havia pouco para dizer.
O momento dissipava-se sem darmos conta do verdadeiro pretexto: A exposição do Manuel na Casa da Cultura César de Oliveira.
As palavras que não dissemos naquela noite estavam todas nas telas, matizadas em cores indecifráveis da memória.
Vou-me embora. Queres saber o que é que eu acho? Não pintes o bigode ao gato.
Boa exposição Manuel.

quarta-feira, dezembro 29

26 de Dezembro de 2004

Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.
Mas ninguém diz violentas
As margens que o comprimem.
[ Bertolt Brecht ]

Por algum motivo, ontem ao caminhar reparei nas folhas arremessadas vorazmente pelo vento, como um colérico valsar da Natureza. A nudez dos plátanos, o cair dos seus últimos e mais resistentes atavios, os súbitos murmúrios da noite pareciam cânticos suaves e piedosos carpindo a tragédia.
A imagem brutal de um filho roubado pelo mar apressou a caminhada. Queria fugir às ondas de comoção, aos cânticos plangentes arrastados pela catástrofe, à ópera do infortúnio, à complacência solidária e a todas as demais aliterações emergentes.
Queria muito ouvir o som da porta fechar-se atrás de mim, na esperança que a clausura me ajudasse ao esquecimento, mas depois da marulhada da desgraça, permaneceu a imagem flutuante da nossa pequenez perante a vida e a Natureza mas acima de tudo o tributo que todos, mais tarde ou mais cedo, lhe devemos.

sexta-feira, dezembro 24

25 de Dezembro de 2004

Mais um pedaço de matérias vegetais transformadas num alvo disponível ao registo de coisas que não bastam ser ditas.
Palavras tristes, desenhadas vagarosamente sobre o nascer de um novo dia, uma nova passagem no entretecer dos fios que se apertam, se entrelaçam e se apertam novamente.
Bastava dizer que está um lindo dia.
Bastava falar das paredes que me enclausuram numa dor inexprimível. Que o Natal é uma lâmpada pendurada por um fio, que este frio adstringente de Inverno me impede de escrever coisas que não bastam ser ditas.
Há dois mil anos atrás, poderiam ter evitado este meu tormento, este torpor no encontrar de coisas para escrever, quando olho pela escuridão da noite a intermitência das luzes que se mostram compassivas por esta inércia.
Culpo a Trincadeira, o Aragonês, o Alicante Bouschet e o Cabernet Sauvignon, desta minha ausência, mas a minha mão permanece sóbria e disponível para a insistente espera das palavras que não saem. Porque hoje, para além de um lindo dia, haveria mais coisas para escrever.
Só que as solitárias luzes lá fora, emprestando adornos que se repetem, solicitam outras veleidades, não dando conta que também eu estou sozinho. Na companhia, é certo, de Vivaldi, perturbado de quando em vez pelo crepitar da lareira, do Aragonês, da Trincadeira, inebriado de solidão, longe dos rituais, dos indigentes abrindo os telejornais, da sopa dos pobres, da solidariedade representada e de outras hipocrisias.
Vou correr as persianas.
Não quero mais ver as luzes intermitentes e os Pais Natais pendurados nas varandas.
Fico-me com o Aragonês, a Trincadeira, o Alicante Bouschet e o Cabernet Sauvignon, num subtil, encorpado e aveludado néctar, que me proporciona um doce desalinho.
Que persistam as palavras que me esperam, que o que me apetece tão somente é escrever que hoje esteve um lindo dia.
Agora vou dormir!

quinta-feira, dezembro 16

Precisei de lá voltar

Ao sítio que dá sentido ao pouco que me resta e me faz sentir o que ainda sou, para além dos despojos que só aguardam o fim.
Desta vez levei algum tempo para me distrair do olhar compassivo da natureza. O murmúrio da ribeira, o queixume das folhas, o ruflo das aves, soavam a gritos resmungados de acusações ininteligíveis. Mas ao menos ali, na quietude daquele lugar, a dor é mais suportável e a culpa torna-se redimível pela evocação da felicidade na lonjura do tempo.
Olho-me com piedade, pelo desleixo e degradação, mas ali, no Chão do Pinheirinho consigo imaginar-me pequeno, irrequieto mas feliz. Com a agilidade para desafiar o perigo, correndo de levada pelos muros da ribeira, numa alegria esfuziante, capaz de me levar ao choro, só de o lembrar.

sexta-feira, novembro 26

Palavras escritas

Acordo. Sento-me frente a uma janela. Na mesa um papel, uma caneta e o mesmo desejo, a mesma obstinação.
O crepúsculo dissipa-se suavemente e a natureza acorda no ressurgir das suas formas. Contornos que vão surgindo no prelúdio de um novo dia. Na neblina o bocejo difuso das árvores e ao longe, suspensas no horizonte, casas brancas denunciam vida no ondeado da serrania.
Palavras que se escolhem e se juntam para dizer a simplicidade de um olhar.
Foi assim mais uma vez, um ritual que se repete todos os dias. Escrevo e reescrevo, purgando excessos, na procura da perfeição impossível, um exercício solitário levado até ao limiar do insuportável.
Palavras escritas, palavras que resistem à voragem dos meus vazios, que me fazem bem mas não dizem nada, escritas simplesmente.

sábado, novembro 20

Um dia mau

O que nós não tentamos para contornar o fim. Tentamos a diferença, a singularidade, o etéreo, até um dia a Natureza tornar estéreis essas veleidades na fugacidade dum instante, como um soco no baixo-ventre.
Reinventamos tudo no espectro do acabamento, na angústia do aperfeiçoamento impossível.
Na passividade quase desistente dos meus dias, o mesmo desejo patético de notoriedade: Escrevo, penso-me diferente e quase chego a acreditar nessa singularidade.
Mas afinal quem sou? E de tudo o que sou, em que é que o sou mais? De repente pensar que há um tipo que sou eu, um rebotalho esparso e inconsequente de uma existência cheia de coisas vagas, inquieta-me.
E nesse resgate doloroso de uma vida sem fulgurâncias, o que é que em mim acabou muito antes do meu fim? Sim… o que é que perdura para além dos ossos que me sustentam?
Sentir-me assim, esvaindo-me no silêncio do abismo, na angústia do irrecuperável, no sopro tempestuoso da culpa, resta-me simplesmente ser. Há muito que me quedei no recosto dos meus limites, desistindo de ser mais nada para além disso.
Amanhã volto a escrever.

domingo, novembro 7

O tempo dos cabotinos

A manifesta incultura da sociedade, a apatia generalizada do momento que atravessamos, propicia o pretensiosismo.
Poderia falar-se hoje nos tempos dos cabotinos, gente que quer aparecer, alardeando capacidades que não possui no ofício das artes, ou em veleidades mais etéreas, como seja compreender o século XXI, em palestras acreditadas por oradores convidados.
Sendo os assuntos escolhidos, compreensivelmente inatingíveis ao nível cultural da maioria, fica a ideia insidiosa e narcísica que tais propostas e tais promotores não são mais do que barracas e feirantes numa autêntica feira de vaidades.