sexta-feira, novembro 26

Palavras escritas

Acordo. Sento-me frente a uma janela. Na mesa um papel, uma caneta e o mesmo desejo, a mesma obstinação.
O crepúsculo dissipa-se suavemente e a natureza acorda no ressurgir das suas formas. Contornos que vão surgindo no prelúdio de um novo dia. Na neblina o bocejo difuso das árvores e ao longe, suspensas no horizonte, casas brancas denunciam vida no ondeado da serrania.
Palavras que se escolhem e se juntam para dizer a simplicidade de um olhar.
Foi assim mais uma vez, um ritual que se repete todos os dias. Escrevo e reescrevo, purgando excessos, na procura da perfeição impossível, um exercício solitário levado até ao limiar do insuportável.
Palavras escritas, palavras que resistem à voragem dos meus vazios, que me fazem bem mas não dizem nada, escritas simplesmente.

sábado, novembro 20

Um dia mau

O que nós não tentamos para contornar o fim. Tentamos a diferença, a singularidade, o etéreo, até um dia a Natureza tornar estéreis essas veleidades na fugacidade dum instante, como um soco no baixo-ventre.
Reinventamos tudo no espectro do acabamento, na angústia do aperfeiçoamento impossível.
Na passividade quase desistente dos meus dias, o mesmo desejo patético de notoriedade: Escrevo, penso-me diferente e quase chego a acreditar nessa singularidade.
Mas afinal quem sou? E de tudo o que sou, em que é que o sou mais? De repente pensar que há um tipo que sou eu, um rebotalho esparso e inconsequente de uma existência cheia de coisas vagas, inquieta-me.
E nesse resgate doloroso de uma vida sem fulgurâncias, o que é que em mim acabou muito antes do meu fim? Sim… o que é que perdura para além dos ossos que me sustentam?
Sentir-me assim, esvaindo-me no silêncio do abismo, na angústia do irrecuperável, no sopro tempestuoso da culpa, resta-me simplesmente ser. Há muito que me quedei no recosto dos meus limites, desistindo de ser mais nada para além disso.
Amanhã volto a escrever.

domingo, novembro 7

O tempo dos cabotinos

A manifesta incultura da sociedade, a apatia generalizada do momento que atravessamos, propicia o pretensiosismo.
Poderia falar-se hoje nos tempos dos cabotinos, gente que quer aparecer, alardeando capacidades que não possui no ofício das artes, ou em veleidades mais etéreas, como seja compreender o século XXI, em palestras acreditadas por oradores convidados.
Sendo os assuntos escolhidos, compreensivelmente inatingíveis ao nível cultural da maioria, fica a ideia insidiosa e narcísica que tais propostas e tais promotores não são mais do que barracas e feirantes numa autêntica feira de vaidades.