sexta-feira, junho 3

O apelo da escarpa

Percorri o caminho sinuoso com o olhar atento às minudências da flora da Serra da Estrela, na esperança de descobrir a tal planta de cinco pétalas que simboliza hoje a cidade de Seia. Por momentos julguei tê-la encontrado. Seia, onde o tempo pára e a saudade fica... recordo a frase.
Soube mais tarde que foi retirada do contexto, numa leitura apaixonada do criativo quando procurava palavras poéticas para a terra que começou por ser dos Túrdulos.
Agora estou aqui. Sentado em cima de Manteigas. Na algaraviada indecifrável lá em baixo o bater de uma porta, o grasno de um gaio, um latido e um choro de criança, são os sons que melhor se definem pela escarpa acima.
O meu pé suspenso oscila por cima da vila com o mesmo tamanho das casas. Penso numa tela, numa fotografia. Seria uma excelente ajuda mais tarde, quando a minha copiosa memória corroída pela idade quisesse lembrar o momento. Mas não! Trouxe apenas a minha ‘BK 77’ e um bloco A5. Numa das folhas brancas começo a descrever o que a minha alma alcança. Aqui no Miradouro do Fragão do Corvo os meus olhos vêem as cambiantes verdes da serrania a espreguiçarem-se na lonjura desse mesmo olhar, mas o que me interessa é escrever sobre a emoção de estar aqui. Quero cá voltar pela evocação dessas palavras.
Escrevo a emoção que sinto hoje, aqui. Este sentimento indizível duma felicidade que quase magoa, intenso mas leve para nunca ter perdido a sensação de suspensão nem o apelo da escarpa. Por baixo dos meus pés que têm o tamanho das casas de Manteigas, o terrível chamamento do despenhadeiro, num convite quase irrecusável do abismo.
A folha onde escrevo esconde essa tentação, mas erguida na linha do meu olhar, são as casas que se escondem e o apelo da escarpa que reaparece. Agora entendo a felicidade que quase magoa e o pouco que impede o desejo.
Porque só a escrita pode registar o que a alma vê, prefiro a escrita a tiracolo em vez da máquina fotográfica. Nenhuma foto me revelaria esta recordação.
Mais tarde quando a idade tiver feito estragos na minha memória tirarei da gaveta estas palavras, e vou querer voltar ao Fragão do Corvo.

Penhas Douradas, 2005/06/01
Joaquim Nobre

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