sábado, setembro 18

Vamos requalificar a Digueifel

Uma simples e pacata aldeia.
Emerge na sua simplicidade uma capela do século XVIII, única e inteira reminiscência do passado, mas que nesta pequena aldeia se assume como um anacronismo dissonante perante um aglomerado incaracterístico de casas. Um candeeiro de luz amarela de baixa intensidade torna o largo da capela ainda mais anacrónico acentuando essa dissonância.
Bem perto, no mesmo largo, uma fonte centenária desvalorizada, uma frondosa árvore assassinada pelo cimento, ao lado de outra sobrevivente que chora agora a sua morte. Taparam-lhe a vida com bancos circulares que consentem os rabos dos censores da vida alheia.
Homens que falam do tempo, das pessoas, do nada que preenche os seus dias, dos resíduos domésticos despejados nas valetas destinadas à drenagem das águas pluviais, da ribeira conspurcada transformada em defecador público, dos terrenos abandonados que há muito se tornaram em latrinas privadas, das famílias que se travam de razões em questiúnculas provocadas por uma sarjeta ostensivamente obstruída.
Esta é uma simples aldeia do concelho de Oliveira do Hospital. Sem peso eleitoral como tantas outras. Onde a insatisfação popular se resolve com visitas fugazes e sorridentes dos autarcas incompetentes, ubíquos e habilidosos.
Isso de assegurar às povoações as condições mínimas de higiene e salubridade é um conceito demasiado urbano.
Tratem vocês disso respondeu o edil ao obstrutor da sarjeta.
É o que o tio António faz todos os dias à mesma hora quando se dirige à calhada e evacua os excedentes do que o mantém vivo.
O que é que eu posso fazer? Aquele pedacinho de terra do meu quintal já é seu por uso capeão. Vou eu agora contrariar hábitos milenares de vida?
Saneamento, saúde pública... Tratem vocês disso, disse o edil.
Muito já foi feito. Então e aquele candeeiro oitocentista, só visto nas mais belas e nobres vilas deste País? Nestes tempos da requalificação vamos mas é requalificar a Digueifel. O Candeeiro já lá está. Tem que se começar por algum lado.
Os esgotos o saneamento, a higiene pública, isso pode esperar.
Nada como um adorno ou a poesia para apaziguar as inquietações destes pedantes visionários que invadiram as nossas aldeias.

Viver em certa aldeia pobrezinha
Longe dos homens, longe da Cidade
Levantar cedo e logo manhãzinha
Ir ao cantar do galo até à herdade

Mourejar todo o dia e à tardinha
Sem gestos de etiqueta ou de vaidade
Subir ao monte, entrar na capelinha
E rezar à Senhora da Piedade.

Não ter mais sonhos! Não ter um desejo!
Amar as flores, o Céu, amar a Terra
Do Sol, no poente receber o beijo.

E nessa paz divina, Sacrossanta,
Ter como amigo um belo cão da Serra
Por confidente...uma cabritinha branca!

(«O Meu Sonho» de Inácia Cid Teles)

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