sábado, setembro 25

Arquivo morto


Como em qualquer escritório existem prateleiras onde repousam os dossiers que depois passam para outros compartimentos e finalmente o arquivo morto.
Há dias decidi arrumar o meu. Entre outras coisas acabei destruindo papeis e documentos que julguei desnecessários.
Rasguei-os, coloquei-os num saco para a reciclagem no pressuposto de voltarem a ser novamente reutilizáveis.
Enquanto o fazia, a minha mente ( ou a segunda, como li nas Valquírias ) viajou até ao cemitério do Alto da Conchada.
Era o dia do funeral de um familiar, e como é hábito nestas, nem sempre tristes ocasiões, acompanhei as visitas às tumbas de outros familiares e amigos desaparecidos.
No cemitério da Conchada, como na maior parte dos cemitérios das cidades, a urna fica a aguardar que o coveiro execute o trabalho final, ou seja, tirá-lo da prateleira para um buraco, até que um dia transite para umas exíguas gavetinhas, identificadas por números que o tempo vai tornando indecifráveis. É este o fim triste de qualquer mortal, salvo os afortunados que têm sumptuosos jazigos com inscrições esculpidas de versos encomendados.
Mas até esses, a julgar pelo que vi, supostamente por dificuldades económicas, ou pelo resultado inapelável da acção de um executor judicial, acabam com placas a dizer «VENDE-SE».
Consternado, e exausto na procura de uma gavetinha com ossos de um antepassado, que já poucos faziam ideia onde, dei comigo a pensar como gostaria de ser apenas um simples papel.
Quando chegasse o fim da minha utilidade, passar-me-iam por uma daquelas máquinas que destroem em fitinhas e com alguma sorte novamente um papel branco.
Quem sabe não teria a sorte de um dia sentir as carícias de um aparo e perpetuar a minha existência numa qualquer estante.
Que bom seria sentir-me de quando em vez escolhido e desfolhado por um dedo indicador.


J. Nobre
2002

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